Jogatina ancestral

Thaís Campolina
3 min readNov 7, 2020

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Acervo Pessoal

Minha vó carrega seus baralhos para todo lugar que vai. Sim, baralhos. No plural mesmo. Me cansei de vê-la tirando-os da bolsa para colocá-los em cima da mesa, lado a lado com a bolsinha de tentos, para sinalizar que chegou a hora de jogar. Festa de aniversário, Sexta-feira Santa, Quarta-feira de Cinzas, batizado, Natal, Páscoa, nenhuma data é sagrada demais para que não se possa jogar, provavelmente porque, implicitamente, sabemos que há algo de sacro no ritual desses jogos que passam de geração a geração. Assim aprendi a construir relações em torno dessa mesa, que ora é abundante em comida, ora se enche de cartas, sempre com muita conversa, e sei que isso é bem anterior a mim.

Minha bisavó também jogava. Talvez a mãe dela também. Não sei. As informações se perdem com o passar do tempo. Sei que ela jogava poker, apostava entre homens, ia na casa deles jogar, mesmo em um tempo em que a possibilidade de se fazer isso era limitada para mulheres. Sei também que minha avó, ainda bem novinha, aprendeu todo tipo de jogo com ela e que minha bisa era professora e ensinava crianças a ler na mesma mesa que servia vez ou outra como um palanque para ela. Você pode ler essas últimas frases e não entender o porquê delas estarem aqui, nesse texto sobre jogos de baralho, mas pra mim faz sentido. Jogos de baralho, no geral, são considerados uma diversão masculina, especialmente o truco, preferido da minha vó, e o poker, melhor jogo segundo minha bisa que nunca conheci. Minha família, ainda que reforce muitos estereótipos de gênero, sempre permitiu e incentivou que mulheres tivessem seus momentos de diversão e socialização e tem como tradição repassar essa sabedoria e toda a energia que ela evoca.

Minha vó começou a me ensinar o truco quando eu tinha seis anos. Antes disso eu já dominava burro, fedô, rouba monte e todos esses jogos que fazem muito sucesso com crianças. Só que o truco é diferente, é um aprendizado contínuo, cheio de lições. Não basta saber reconhecer um zap, um 7 de copas, uma espadilha e um 7 de ouros quando ele aparecer em sua mão, é preciso saber farejar cada uma dessas cartas, tanto no adversário, quanto no parceiro. Até hoje, quando sou dupla da minha avó, aprendo alguma tática nova, mas desde 1995 sei que é preciso fazer a primeira, chegar com o pé na porta, mostrar para o que veio.

Não fazer a primeira é um risco. Um risco de continuidade que não vale a pena correr. Essa lição minha avó aprendeu com sua mãe e ela segue reverberando em mim. A partir dela, escrevo hoje esse texto para a #EstaçãoBlogagem. Paus inicia tudo e eu não posso deixar de fazer a primeira, mesmo que meu site ainda não esteja pronto. Escrevo agora, posto no prazo da primeira rodada onde der e me dou uma chance de continuar fortalecendo meu impulso criador. É do início que se começa qualquer viagem, minha vó nascida sob o signo de Áries diz para mim, neta que tem o carneiro como ascendente, mas não acredita nessas coisas, apesar de não conseguir ignorar toda essa simbologia. Como ignorar a possibilidade mágica dos meus rituais familiares quando o zap é um quatro de paus, que no tarô e no truco costumam simbolizar a celebração de uma conquista?

A Estação Blogagem foi criada pela Aline Valek e pela Gabi Barbosa para movimentar a blogosfera e engajar leitores e escritores em torno dos blogs, escrita e leitura. O tema proposto para o primeiro mês foi tarô. Nas próximas semanas, eu postarei textos escritos a partir desse estímulo, espero que já diretamente no meu site em formação. Para iniciar os trabalhos, elas escolheram como tema o naipe de paus, que é diretamente relacionado à energia do fogo, logo impulsionador, dinâmico e que fala com a nossa criatividade.

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Thaís Campolina

leitora, escritora e curiosa. autora de “eu investigo qualquer coisa sem registro” e “Maria Eduarda não precisa de uma tábua ouija” https://thaisescreve.com